Vera Pinheiro
Onde está, afinal? Revirei a gaveta do armário a procura de outro tubinho de creme. Pensei que tivesse mais um, mas devo ter esquecido de comprar para manter em reserva ou talvez imaginasse que nunca fosse acabar. Uso creme com freqüência, especialmente no tempo frio, no inverno que resseca a pele, por isso, logo termina. Justo quando mais precisava dele... estava quase no fim, restava muito pouco. Tirei, com algum esforço, o que sobrava. Com o cabo de uma escova, espremi o tubinho quanto pude, até sair o pouco que ainda havia de creme. Com a tesoura, cortei na metade, raspei para pegar a sobra. Agora não tem mais. Preciso repor e ficar mais atenta, para ter quando preciso. Não devo deixar que acabe sem que eu tenha percebido. Assim também com os meus afetos, pensei.
Muitas vezes tentei espremer uma amizade para reanimá-la e não consegui, porque já não havia mais nada dentro da relação. Alguns amores, por falta de uso, perderam prazo de validade e foram jogados fora. De outros, perdi a garantia e o conserto do que estava errado no relacionamento exigia custo alto demais. Isso me fez desistir. Não disse a muitas pessoas quanto gostava delas e por que as admirava. Nem sabiam que as admirava. Muitos dos que procurei já não estavam no mesmo lugar, já haviam partido ou não me reconheciam mais como um afeto. As lembranças foram se espalhando diante do espelho, enquanto passava o pouco creme no rosto, já molhado de lágrimas fartas.
Admiti o meu descaso com afetos que me eram muito caros e que perdi. Reconheci não ter feito o melhor para manter comigo pessoas que estavam na minha vida. Vi no excesso de entrega do meu tempo ao trabalho uma das causas do meu isolamento. Ninguém agüenta pessoas que só trabalham. São mesmo insuportáveis.
Tentei lembrar de quantas vezes deixei de retornar uma mensagem que me enviaram, um telefonema que me deram, um carinho que me fizeram... Eu, que não gosto de contabilizar essas trocas, revi minhas atitudes em relação aos outros, como tenho retribuído o que me alcançam, quanto tenho manifestado da minha gratidão, do meu amor, da minha afeição pelos outros. E não deixei de perceber, claro, quanto tenho de volta. Às vezes, dando pouco, muito recebo por conta da generosidade alheia. De outras, por mais que oferte, não há permuta, e me sinto um tubinho vazio: não adianta espremer, não há mais nada que possa ainda dar de mim para aquela pessoa que descuidou da reposição do meu bem-querer.
Como penso que reflexão sem ação vira divagação, tratei de colocar em prática o exercício que me sugeriu o espelho, onde via o rosto maior do que o tantinho de creme, tão semelhante à necessidade de ter afeto para espalhar pela vida. Logo cedo, escrevi para quem enviou a mensagem que restava sem resposta, a espera do meu tempo. Antes de começar o trabalho, mandei um recado de carinho para duas pessoas que admiro e que, imagino, não sabiam quanto. No tempo que usaria para tomar cafezinho, telefonei para uma amiga que iniciou novo projeto de vida. Queria motivá-la, e não sabia que a coragem que tanto admirava nela estava um pouco enfraquecida. Ela ficou feliz, pois precisava de um reforço justo naquele momento. Dei um intervalo na missão e liguei para outra pessoa, de quem gosto muito, apenas para desejar que a semana fosse feliz e que a meta que buscava fosse, enfim, alcançada. Passei o dia desenvolvendo o projeto de renovação do meu estoque de afeto em pequenas ações, que não exigiram muito do meu tempo e me lotaram o coração de alegria.
No final desse dia em que fiquei tão vigilante no trabalho quanto nas minhas emoções e dei a mesma atenção ao que fazia quanto aos meus afetos, passei na farmácia para comprar outro tubinho do meu creme predileto. "Não tem, acabou o estoque. Semana que vem, talvez". Outra farmácia, a mesma resposta. Supermercado, quem sabe? Nada na prateleira, já tinham levado. Não posso pedir emprestado. Creme e amado de amiga a gente não usa! Cada uma tem de ter os próprios.
Voltei para casa sem o que precisava. Ainda na gaveta repousava o que sobrou do tubo retorcido à exaustão do seu conteúdo, agora esvaziado. Onde estão os meus afetos? Por que não ligam, não escrevem, não mandam nem pedem notícias? Porque não dão o primeiro passo, que dessa vez ensaiei e cumpri. Ficam em silêncio, como tantas vezes fiquei e os outros, a espera de mim. Até agora, porque não quero mais que meus afetos sejam tubinhos de creme vazios que, quando preciso, não têm mais nada para mim. Vi que estava pouco cuidadosa e desatenta ao ciclo de vida que tinham na minha história. Por isso, agora, eu dou o primeiro passo e espero o passo deles na minha direção, para que façam tanto bem à pele como aquele creme. Para que amaciem os meus dias no inverno da existência. E enquanto ainda posso dar de mim. Sem apertos, mas por disposição e vontade.
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quarta-feira, abril 30, 2008
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5 comentários:
Rosa
Linda mensagem.
Nos vivemos sozinhos, isolados e acabamos esquecendo do mundo e das pessoas.
Beijinhos
Rosa, que linda mensagem de reflexao aos nossos atos. Mas é assim mesmo. Nao sei se é a vida que passa, mas acho que nós muitas dasvezes deixamos passar a vida. Também lamento certas ocasioes em minha vida, mas outras que eu preferia nao tê-la passado.
Mas eu sou muito assim de procurar as pessoas, de visitá-las e se eu recebo uma visita a qual eu nao visitei eu a retribuo logo que posso.
Esta semana está bem difícil para nós aqui, a Viviane pela segunda vez está com pneumonia, por isso tb o meu sumico. Ela requer muita atencao, pois o caso está bem sério e como sou sozinha com os filhos por aqui, sem parentes por perto vc pode imaginar como estou.
Grande beijo em vc e bom fim de semana
Rosinha,
ótima crônica e bela reflexão!!! Adorei teu texto!
Estou voltando menina... Saudades de ti!
beijos
Obrigada, Rosa, pela divulgação da minha crônica. O teu carinho é recebido como uma homenagem ao que escrevo. Aproveito para convidar os teus leitores a uma visita ao meu blog
(http://blog.verapinheiro.net).
Um beijo com meu carinho,
Vera Pinheiro
Muito linda a crônica,Rosa.
Bjus
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